quarta-feira, 14 de novembro de 2007

APÊNDICE II - POETA, MULHER E CIDADÃ MILITANTE: LÉA APARECIDA DE OLIVEIRA

APÊNDICE II

POETA, MULHER E CIDADÃ MILITANTE:
LÉA APARECIDA DE OLIVEIRA



A poeta Léa Aparecida de Oliveira, mineira, que a história tornou cidadã mauaense e, conseqüentemente, do Grande ABC, desaparecida em 88, era uma figura polêmica, admirada e detestada por muitos. Talvez por ter vivido tão intensamente os seus 32 anos de existência, tenha deixado marcas tão profundas como poeta, mulher e cidadã militante que foi.
Conheci Léa Aparecida de Oliveira, uma moça bonita, robusta, corajosa, desfilando num jipe conversível, pelas ruas da provinciana cidade da Porcelana, no ano de 1980, fazendo parte do Colégio Brasileiro de Poetas, de Mauá. Léa permaneceu pouco tempo no grupo, mas o nosso conhecimento foi transformado em papos e amizade que se estendeu até à época em que, já eleita vereadora, em 1982, sempre dedicava um tempinho a uma visita à Prefeitura, mais precisamente à Seção de Rendas Imobiliárias, onde trabalhávamos, eu e o poeta J.Ramos, seu grande amigo.
No Colégio Brasileiro de Poetas, Léa participou da antologia “Revoada de Pássaros Negros”, 1980, Edições Mariposa, com vários poemas, sendo quase todos gestados durante o dia, na Constanta, em Ribeirão Pires, onde trabalhava, e paridos à noite em casa do confrade Aristides Theodoro, retrabalhando e dando acabamento final. Um deles demonstra bem o engajamento na luta operária – trata-se de Resistindo:

Meus versos confundem-se Em meio à produção
E na seção o inferno O barulho que nos ensurdece
E nos mata a cada instante

E assim em desespero
Aderimos à greve
E foi assim, com euforia,
Que nos sentimos gente”.

Um outro que é o espelho da sociedade ainda hoje – “Estádio do Morro”:

“Roupas embandeiradas
Nos quintais
Barracos assentados
Nas arquibancadas dos morros
Misto de cores
Seleção de Misérias
Reserva do Submundo
Do decantado progresso”.

Há também a parte subjetiva, que mostra a mulher – “Estupro”:

“Me esfacelo
Em areia morta
Em partículas brancas
E num esforço sobre humano
Cato restos de esperanças
E junto tudo com zelo
para construir sonhos
Os sonhos que anseio
E como indígena
Mostro meus seios
Alvos seios
Que despontam do meu corpo
Mas a bruta realidade
Chega e me violenta
E me tritura
Em pequenas partículas
De areia morta
Até que caio na feia realidade.”

Individualmente, deixou publicados os livros “O Sol e Eles”, Massao Ohno Editores, l981; “Etikêtas com Peixes e Batatinhas”, produção independente, sem data, e “Talvez Amanheça, Poemas Manuscritos”, Santo André, 1984. O Sol e Eles é um título que já estava nos seus planos, quando fazia parte do Colégio Brasileiro de Poetas. Relacionado a este, deu-se um fato que vale a pena lembrar, pois enfatiza sobremaneira o lado radical da sua personalidade. Numa reunião do grupo, ela defendera O Sol e Eles para um jornalzinho idealizado pelo Colégio. Posto em votação, perdeu por um total de doze votos contra três, sendo dois desses votos um dela e outro do namorado, que, embora não pertencesse à agremiação, fora autorizado a votar. Insatisfeita com o resultado, a poeta retirou-se do recinto, pisando duro, escadas abaixo, arrastando o namorado pela mão, não sem antes nos tachar de burros, incompetentes, ditadores de merda, etc. Retirou-se não só do recinto, mas de forma definitiva do grupo, também.
Era assim a Léa, estouvada e radical, quando não conseguia os seus intentos. No poema-prosa, Os Miseráveis de “O Sol e Eles”, ressalta esse aspecto num só verso, que diz assim: “À merda tudo e todos.”
Outro ocorrido, que faz lembrá-la, é do tempo de vereadora. Na época, o então Prefeito Leonel Damo queria vender algumas praças centrais de Mauá. A parlamentar encabeçou um movimento contra, cujo desfecho seria na Concha Acústica, na Praça 22 de Novembro. O Aristides Theodoro, anarquista como ele só, escreveu um artigo no jornal “A Voz de Mauá” a favor do prefeito, provocando a ira das esquerdas. Léa, ao ler o artigo, espalhou por toda a cidade que, se o nosso poeta e crítico literário aparecesse naquele dia, quebraria a cara dele, para todo mundo ver. Informado, o poeta achou por bem não botar os pés, muito menos a cara, no tal evento.
Além das publicações, a autora deixou um acervo inédito, incluindo um sem número de poemas – alguns rabiscados, outros datilografados e edições organizadas com ilustrações e tudo mais. Pelas anotações, arquivo e diário de viagem, além da poesia, a artista manifesta o desejo de dedicar-se ao teatro, após deixar a política; o que tencionava fazer, mesmo antes de terminar o mandato de vereadora.
Léa Aparecida de Oliveira nasceu aos catorze de novembro de 1955, em Ouro Fino – Crisólia, Estado de Minas Gerais; a inesquecível Crisólia, por ela evocada em Recordação:

“Os ciprestes e as árvores
Vão sombreando o tempo
Da velha vila / velha casa
Crisólia de Minas
Gerais e não iguais
Velhas e atuais
Recordação do Jamais.”

Mais tarde vem para a “terra da garoa”, acompanhada da família.
Embora distante, não esquece o torrão natal, lembrando a infância num trecho de Aos Cinco Anos: “As tardes cheiravam café com leite... / Os telhados das casas ao redor da igreja se sobrepunham à tarde morna com suas telhas curvas e marrons feito chocolate”.

Na década de 60, já em Mauá, onde a família fixa residência, atua na Sociedade Amigos de Bairro, do Jardim Anchieta. Sendo operária metalúrgica, de 1974 a 1982, participou da Comissão de Fábrica da Constanta (Grupo Philips) e liderou um movimento grevista, conspirando dentro da própria fábrica. Essa fase é registrada em Conspiração:

“Nas noites
De Verão
Ornamentadas
De pirilampos
Nem sonhava
Com a produção
Produzia apenas
Sonhos de outra dimensão
Jogar bolinha
Jogar amarelinha
Rodar pião.
Agora
Ora veja
Eis-me aqui
Engajada
Servindo
O patrão (...)”

A conspiração parou: a grevista foi presa na portaria da Constanta e levada para o DOPS. Nos dias em que lá esteve, apanhou e teve a clavícula quebrada.
Em conseqüência, fez uma viagem à União Soviética, fugindo do país. Segundo a família, a polícia ainda voltou à sua casa. Há um poema do seu livro Etikêta com Peixes e Batatinhas, que traduz o momento grevista do final dos anos setenta, no ABC, e que se intitula ABCD:

“Tomemos uma colher de sopa
deste fino opium do povo
para podermos dançar na ferrugem
dos campos magnéticos do ABC (...)”

Após esse momento grevista, a Constanta, onde trabalhou de 74 a 79, dá-lhe uma promoção e manda para o escritório central da firma, em Mauá, ou seja, encontrou um meio discreto de afastá-la do meio operário. Insatisfeita, deixa o escritório e vai trabalhar no Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André, de junho de 82 a março de 83. Léa participou também dos movimentos grevistas de 79 a 80, no ABC. A militante teve participação ativa no I e II Encontros Paulista, Mulher, em 78 e 79. Integrou, ainda, o Comitê pela Anistia.
Em 1982, Léa Aparecida de Oliveira elege-se vereadora em Mauá, pelo Partido dos Trabalhadores, que ajudou a construir. Numa das primeiras reuniões, a vereadora rebela-se contra a infrutífera discussão dos “nobres colegas”, pois se questionava o fato de como a frondosa paineira, que ainda hoje dá vida à Praça Teotônio Vilela, deveria chamar-se dali por diante e davam um nome de cá, outro de lá, menos o que a árvore era: paineira. Então ela sobe à tribuna e começa dizendo que precisaria ter trazido de casa um saco de risadas, para se divertir com tamanha idiotice.
Certamente, pela coragem e discernimento quanto às prioridades sociais, é que se tornou líder da bancada do PT, na Câmara, por três anos e membro do Diretório Regional do PT-SP. Atuou nos movimentos populares de Mauá e do Grande ABC, tais como: a venda das praças centrais de Mauá; a criação do Movimento Ecológico contra a poluição da represa Billings; da Comissão de Inquérito para averiguar a situação do Hospital e Sanatório Capburgo e participou das greves da Porcelana Nara, dos bancários, dos motoristas, etc. Em 1986, candidata-se à deputada estadual, pelo PT.
Em 1988, ano em que veio a falecer, permaneceu um mês na Colômbia, fazendo uma pesquisa cultural em arte dramática. Já decepcionada com a causa política, pretendia abandoná-la e seguir um ideal artístico, além da poesia, a que se dedicava. Devido às várias correntes formadas dentro do PT e à oposição dos partidos contrários, no final do mandato, ela não conseguiu levar avante determinados projetos, interrompidos no nascedouro, provocando na parlamentar uma sensação de impotência.
Por fim, no dia 19 de junho de 1988, ao retornar de uma vitória política, em plenário, sobre a corrente antagônica que queria a coligação do PT com o PSB, a morte colheu-a em toda a sua plenitude, num trágico acidente de carro, na saída da cidade de Mauá.
Acreditamos que, após toda essa trajetória de luta, Léa continuasse a perseguir seus ideais através da arte, poesia ou teatro. A cidadã e a artista sobreviveriam.

FONTES DE CONSULTA

- Antologia “Revoada de Pássaros Negros”, do Colégio Brasileiro de Poetas de Mauá, Edições Mariposa, 1980.
- Livros da Autora: “O Sol e Eles”, “Etikêta com Peixes e Batatinhas”, sem data e “Talvez Amanheça”, 1984.
- Entrevista ao poeta e crítico literário, Aristides Theodoro, do Jornal da Manhã e a Voz de Mauá, entrevista a familiares, hemeroteca, álbuns fotográficos, diários de viagem, documentos e inéditos da autora.

Este artigo,gentilmente cedido pela escritora Iracema M. Régis, foi a princípio publicado na revista Em movimento, dos Escritores em Movimento, Região do ABC, agosto de 1998.

Iracema é jornalista, poeta, ensaísta e contista. É autora do livro “Poesia” e co-autora em “Como Preparar Um Diabo Velho em Forno Brando”, com Aristides Theodoro. E tem participação em antologias, no ABC, São Paulo e Matão, através de contos, crônicas e ensaios literários.


* * *

participe da Comunidade literária Estórias de CURIAPEBA
http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=40605150
-
Veja o Blog com algumas das Estórias de CURIAPEBA
http://estoriasdecuriapeba.blogspot.com/

Um comentário:

Anônimo disse...

Léa
Mulher amazona
Que vem a tona
Destruir e recontriur
Utopias
Outrora mortas
Hoje vivas...
Não te vi
Somente senti
Ardor
Sofreguidão
Luta
Paixão...
Quando naquele prédio
Encardido
Amaldiçoado
Te sinto
Num sortilégio anárquico
Provocando o terror
Nos Imbecis
Débeis
Cruéis
Senhores dos grilhões...
Ah Léa
Tu não morrestes
Estás viva
Na dor
Luta
grito
Eterna em cada espaço
De ar
Vácuos nossos
de Mauá...

André Camargo