quarta-feira, 14 de novembro de 2007

CAPÍTULO II

CAPÍTULO II

Volto a falar do grupo de rapazes que criou, nos anos sessenta, o Colégio Brasileiro de Poetas em Mauá. Para tanto, vou relatar alguns episódios periféricos, tendo elementos do grupo como figurantes.
Certa manhã, no já citado Bar do Yugo (pois íamos lá aos domingos, religiosamente), logo ao ocupar a nossa mesa predileta, do lado direito de quem entrava no boteco, fomos tirando dos bolsos os nossos mais recentes escritos, muitos deles feitos durante a semana e começamos a ler e a discutir seus conteúdos. O Moysés Amaro Dalva e o Castelo Hanssen, como já dissemos, eram os melhores poetas do grupo e como tal, Moysés acabara de escrever um poema infame, violentíssimo que, se caísse nas mãos do mais reles soldadinho defensor dos ideais da revolução de l964, seria capaz de conduzir seu autor aos porões sórdidos e fétidos dos DOPs da vida. O poema se chama “A dança do Fogo” e começava assim: “Nós vamos é cortar pescoços, nós vamos é quebrar garrafas”, ...nisso, o Dirceu Hanssen, beberrão inveterado, apelidado por mim de “Quincas Berro D’Água”, tossiu, retemperou a goela, pediu um aparte, para dizer com um sorriso de bêbado estampado no carão vermelho de pimentão maduro:

- Moysés, pode quebrar as garrafas, mas só depois de vazias!...

Castelo Hanssen só engraxava os sapatos esporadicamente e ainda assim para ajudar indiretamente o engraxate (Castelo é de um humanismo extraordinário, uma espécie de São Francisco de Assis com cara de alemão). Sentou-se na cadeira do profissional, encostou-se à parede do bar, pelo lado de fora e, assim que o rapaz começou a limpar a lama do calçado, apareceu, na esquina da rua Justino Paixão, um camburão da Polícia em alta velocidade, com as luzes e sirenas ligadas, em verdadeiro berreiro de fim de mundo. O Castelo sempre detestou policiais, a ponto de escrever um poema com os seguintes dizeres: “Um homem é um homem, mesmo humilhado, mesmo castrado, mesmo cagando; um homem é um homem, um soldado é um soldado...” E, com este pensamento na cabeça, fez um trejeito bem seu, com os ombros, tirou uma fumaçada do seu fedido “Macedônia” e disse, com aquele seu jeitão simples de ter desprezo:
- Puxa, eu nem comecei o discurso subversivo e o sacana do Sodré (governador na época) já me manda as forças armadas! – Provocou assim um desadouro de risadas entre os presentes. Com raríssimas exceções, ninguém tinha dinheiro (tempos duma miséria doirada, especialmente para mim e o Moysés), porém tínhamos em comum “20 anos” e uma tonelada de sonhos na cabeça e muita ironia para vergastar e nos vingar dos “poderosos”, dos “donos do poder” (como bem disse Castelo Hanssen num belo poema do seu livro, “Canção pro Sol Voltar”), que prendiam, torturavam e mandavam matar em nome da Lei e da Ordem Política e Social. Tempos terríveis, quando tínhamos medo até das nossas próprias sombras.
Uma vez, o TECO (Teatro da Comunidade de Mauá), fundado pelo professor Luiz Roberto, encenou o conto de Dalton Trevisan, “Uma Vela para Dario” e escolheu o Dirceu para fazer o papel do morto. Dirceu, na hora da apresentação, já havia tomado todas; estendeu-se no chão, em posição de defunto, enquanto os curiosos se aproximavam, lamentando o acontecido e dilapidavam alguns dos seus pertences (como no conto). O Dirceu teve um acesso de tosse e estragou o clima da platéia, que se derreteu em verdadeiras gaitadas, diante da atitude inusitada do estranho morto.
Quando preparávamos a primeira antologia poética do grupo, surgiu o problema do título. Moysés e eu primávamos por um título sugestivo, que chamasse atenção e suprisse, em parte, a primariedade dos nossos versos ou pecados literários. O Castelo Hanssen e o resto do pessoal achavam besteira; o interessante era publicarmos o livro com qualquer título. Assim, foi se aproximando o dia de levarmos os originais para a gráfica e o impasse continuava. Como ninguém se preocupava com o problema, fui para casa do Moysés, no Rio Grande da Serra e passamos a noite em claro, tomando chá (isso para bronca da Ivanise, mulher do anfitrião, danada conosco pelas batidas da máquina quase a noite toda). No fim da jornada, após uma lista de prováveis títulos, descartamos os mais ruins, sobrando assim dois que nos pareceram bons. Um, de que não me recordo agora, era sonoro, bonito, mas com um certo ranço religioso, permanecendo um título pirandeliano, que nos pareceu bom e de certa forma se enquadrava em nossa finalidade: “10 Poetas Em Busca de Um Leitor”. Ficamos contentes, pois no dia seguinte, tínhamos uma reunião com os 10 poetas, na redação de “A Voz de Mauá”, onde pretendíamos dar os últimos remates em tudo, para, na segunda-feira ou terça, levarmos os originais para a gráfica. Ledo engano. Ao apresentarmos, o título foi logo, rechaçado por Castelo Hanssen, sempre do contra, unicamente para fazer oposição ao Moysés. Os dois nunca se deram bem (só que isso é outra história e falaremos dela no momento oportuno), embora se respeitassem literariamente. O Castelo Hanssen, já cheirando a álcool, fez um trejeito com os ombros, sestro bem seu e disse, olhando a lista com nossa escolha:
- Cacas, cacas; isto é título de fresco! Pegou um papel. colocou-o na máquina e escreveu os três títulos seguintes, a seu ver, supimpas, pois o mesmo era adepto do esculacho, isto é, “do quanto pior melhor”: “O Palito”, “O Chinelo” e “Fato de Bode”. Fez um proselitismo negativo em torno de nosso título, colocou-o em votação e ganhou por maioria esmagadora. Fiquei fulo da vida e cheguei a achar, naquele momento, que as frases reacionárias do Nelson Rodrigues tinham razão de ser: “Toda unanimidade é burra”. O título escolhido por nós teve apenas os votos do Moysés, do Samuel Fernandes de Aguiar e o meu. E, diante disso, o livro deveria chamar-se “Fato de Bode”, o mais votado. Ao perceber a desgraceira, como um pequeno ditador tupiniquim, arrebatei o papel com os títulos das mãos do Castelo Hanssen, rasguei e joguei na lata de lixo e arrematei, como um possesso, aos gritos, tremendo de raiva:

Vocês são burros!...Cambada de imbecis, ganharam mas não levam, ouviram?...

Provocamos um fuzuê danado. Naquele dia, fui para casa escoltado pelo Moysés, Marco Salles e Samuel, pois o resto do grupo, especialmente o Moacir, queria minha cabeça numa salva de prata. Com o passar do tempo, permitiram a publicação do livro com o título perdedor, “10 Poetas Em Busca de Um Leitor” e em seguida, passaram a gostar do mesmo.




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