quarta-feira, 14 de novembro de 2007

CAPÍTULO III

CAPÍTULO III

Certa feita, isso faz muito tempo, ao retornar do serviço, à tarde, no ventre de uma “lagarta de aço” da Santos- Jundiaí, como de costume, cabeça enfiada dentro de um livro, notei que, em uma das estações, entrou um pirralho magrinho, amarelo e cabeludo, acompanhado por um sujeito grandalhão, de óculos e cara de gozador. O garoto, ao me ver de livro em punho, logo quis puxar conversa; demonstrava conhecimento do assunto e começou a citar trechos e mais trechos da obra; porém eu, em parte por timidez e em parte para não perder o fio da leitura, procurei não dar ouvidos ao que ele dizia e me fechei o mais possível, a fim de despistar o intruso, que, ainda por cima de tudo, exalava um tremendo mau hálito e estava muito rouco, forçando-me a um grande esforço para ouví-lo (vindo a saber mais tarde que acabara de se submeter a uma operação das amígdalas, daí a sua palidez e o mau hálito).
Ao chegar o trem a Mauá, fiz tudo para me livrar do rapazinho, mas o danado não me permitiu a menor oportunidade e me acompanhou até o ponto de ônibus, de onde, felizmente, seguimos direções opostas.
O garoto, ao despedir-se, fez questão de me dar o seu endereço, como também solicitou o meu. Disse-me que, aos domingos, estava sempre na praça, pois era sócio do Grêmio Monteiro Lobato e tinha por costume, a cada fim de semana, devolver os livros lidos e fazer novos estoques para a semana seguinte, pois era um tremendo devorador de literatura.
Já dentro do ônibus, respirei fundo e dei graças a todos os deuses e demônios, por me livrarem do tal “
carrapicho. O tempo passou e numa tarde de sexta-feira, ao sair do mercadinho Onitsuka, sobraçando alguns pacotes, topei de cara com o dito, que, como um detetive, parecia seguir-me os passos. Agora estava mais corado, mais gordo e já não exalava aquele terrível hálito.
Logo após os cumprimentos, a conversa enveredou para os lados da literatura, coisa mui cara para nós. Conversamos muito naquele dia e, por fim, ao despedir-me, convidei-o a ir à minha casa no próximo domingo, onde poderíamos conversar à vontade, com mais vagar.
No dia e hora aprazados, lá estava o tal garoto, que ficou logo estarrecido ao ver a quantidade de livros que eu possuía. Em pouco tempo, o danado, numa fome insaciável de leitura, devorou como traça, quase que por completo, os meus livros. Deixou de pegá-los no Grêmio e assim, todos os domingos ia à minha casa, tornando-se amigo incondicional de minha família, que o considerava um irmão branco, com cara de italiano. Foi aí que recebeu a alcunha de
Chico que, haverá de acompanhá-lo para o resto da vida.
O garoto, nessa época, não trabalhava e como tinha todo o tempo a seu favor, danou-se a fazer versos. Fazia-os às toneladas; a princípio, fracos, como todo iniciante, porém de um fraco que continha algumas boas imagens poéticas, que já deixava antever o grande poeta a se tornar no decorrer do tempo.
Esse poeta, ou melhor, esse garoto, que até aqui ainda não revelei o verdadeiro nome, chama-se Moysés Amaro Dalva, sem dúvida alguma, um dos grandes valores da poesia moderna brasileira (infelizmente desconhecido do grande público).
Com o passar do tempo, a nossa amizade solidificou-se e, certo dia, conhecemos os irmãos Hanssen, isto é, Castelo e Dirceu; aí estava formado o quarteto poético de Mauá, com quartel general instalado na última mesa ao lado direito, de quem entrava no Bar do Yugo, de saudosa memória, que ficava no início da avenida Barão de Mauá, número 88, onde atualmente se encontra
a Casa Bahia. Foi nesse ambiente que idealizamos misérias , criamos Repúblicas Livres, onde o povo seria soberano; fundamos revistas literárias, jornais de sucesso, editamos livros de altas tiragens e nos tornamos jornalistas e escritores tão famosos quanto nossos mestres queridos: Jorge Amado, Castro Alves, Tobias Barreto, Victor Hugo, Sartre, Camus, Bertrand Russel, etc. Tudo isso não passava de um sonho, uma espécie de sonho acordado, que nos fazia um tremendo bem. Andávamos sempre com as cabeças estourando de idéias mirabolantes, em torno de literatura e arte, e os bolsos quase sempre vazios.
Logo em seguida, no mesmo bar do Yugo, conhecemos o Mané Galileu, mineiro cético, gozador, frio, analítico, que punha os anseios do povo em quase todos os seus pontos de vista. Gostava de discutir política
maoísta e filosofia existencialista, tendo assim um verdadeiro amor-de-perdição por Sartre, Camus e Kierkegaard (seus ídolos).
Na época, conhecemos outros elementos que também gostavam de literatura e que discutiam conosco e nos mostravam outros ângulos da condição humana. Todos mais velhos do que nós e com as respectivas cabeças em seus devidos lugares, e não almejavam se tornar famosos sendo poetas, jornalistas, escritores, editores, pintores e, ou outras coisas que o valham.
Os Hanssen não gostavam de literatura internacional ou, melhor dizendo, de escritores que não fossem brasileiros; tinham verdadeira paixão por Afonso Schmidt, Jorge Amado, Erico Verissimo, Eneida, Graciliano Ramos e apreciavam, entre as exceções, um certo Pedro Alarcon e Knut Hansun, os únicos estrangeiros que, para eles, mereciam crédito, especialmente o último (talvez por ser dinamarquês, como seus ancestrais). Já, o Moysés, Mané Galileu e eu tínhamos predileção por escritores franceses, tais como Balzac, Mérimèe, Sartre, Zola, Jean Genet, André Malraux, André Gide, Jean-Jacques Rousseau, Voltaire, etc. Moysés era tão fanático por Victor Hugo de “
Os Miseráveis” e “Nossa Senhora de Paris”, que chegava a agredir verbalmente os irmãos Hanssen, Mané Galileu e a mim, por não gostarmos da prolixidade de “Os Miseráveis”.
Nessa época, o Moysés já tinha dentro de si o gérmen do Colégio Brasileiro de Poetas, e chegou a copiar centenas de páginas poéticas e disseminá-las pelos quatro cantos do país, sem nunca receber nem mesmo um muito obrigado por parte de um destinatário satisfeito, que pretendesse estimular as ambições do jovem candidato à glória.
Assim foi que teve início o movimento poético em Mauá, que, durante o período de incubação, passou a se reunir na Praça 22 de Novembro, debaixo da Asa da Concha Acústica, onde nasceu o primeiro livro do grupo: “
10 Poetas Em Busca de Um Leitor”, Edições Mariposa, contendo trabalhos de Moysés Amaro Dalva, Aristides Theodoro, Moacir Alves da Silva, Castelo Hanssen, Iracema M. Régis, Antenor Ferreira Lima, Samuel Fernandes de Aguiar, Mané Galileu, Marco Salles e Derci Miranda Gomes. Por aqui se vêem os nossos sonhos da mocidade (que, a princípio, pareciam utopia), “cristalizarem-se”, como diria um Stendhal e, depois, engrossados pelos sonhos de outros irmãos de ideal: J. Ramos, Nair Hiioko Kuroda, Arlindo Capela, Vicente Mariano, Alípio de Melo Pereira, Edson Bueno de Camargo, Domingo Bedeschi, Cecília Auxiliadora Bedeschi, Valmir do Carmo Meira, Chico Tânio, Marilou e muitos outros, criando forma e se materializando, ao dar vez ao Colégio Brasileiro de Poetas que, durante alguns anos, distribuiu livros e poesia “à-mão cheia” por esses brasis afora, através de feira de livros, de mão-em-mão, através do sistema de colportagem e em pleno contato com o povo, esse imenso povo, que hospitaleiramente nos recebia de braços abertos, nos seus lares, escolas, festas de poesia, etc.

(*) Este capítulo fora, a princípio, publicado com o título “De Como Surgiu o Colégio Brasileiro de Poetas”, servindo de prefácio ao livro “Revoada de Pássaros Negros”, segunda antologia poética editada pelo Colégio Brasileiro de Poetas, em janeiro de l981.





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